quarta-feira, 5 de março de 2025

O CUSCUZ DA SEBASTA

Texto de Aloisio Guimarães 

O meu pai trabalhou na Rede Ferroviária Federal S.A., na qualidade de Chefe de Estação, tendo exercido suas atividades em algumas cidades de Alagoas, mas a maior parte do tempo foi em Palmeira dos Índios ou em Igaci.
Quem não conhece Igaci, saiba que é uma pequena cidade, distante cerca de 16 km de Palmeira dos Índios. Todo mundo que viaja de Palmeira dos Índios para Arapiraca, ou vice-versa, obrigatoriamente, tem que passar por Igaci. As duas cidades são tão próximas uma da outra que muitas vezes fiz o percurso Palmeira/Igaci "nas canelas", caçando passarinho, ou então de bicicleta.
Como não pagávamos passagens nos trens, tendo em vista que nosso pai trabalhava na rede ferroviário e por isto éramos conhecidos do Chefe do Trem, quase todos os dias, eu e o meu irmão Casé, estávamos em Igaci. Às vezes dormíamos por lá, outras não. Nas vezes que dormíamos, um de nós tinha a obrigação de ir até a casa da Sebastiana, uma conhecida do nosso pai, buscar um cuscuz de milho, ralado na hora, que ela preparava para o nosso velho comer no café da manhã (torrado em casa), com leite de gado, cheio de nata...
Sebastiana, que chamávamos de "Sebasta", era uma matuta muito bonita, solteira, galega, olhos verdes... Conhecendo o nosso pai, que sempre "gostou da fruta", eu e o Casé sempre desconfiávamos que ele tivesse algum um “rolo” com a moça, mas nunca tivemos a certeza, era só desconfiança. Não comentávamos isto para que mamãe não soubesse ou desconfiasse de nada...
Pois bem, certo dia, dormimos em Igaci e, no dia seguinte, logo cedo, assim que acordamos, o papai determinou:
- Casé, vá lá, na casa da Sebasta, buscar o cuscuz que eu mandei ela fazer...
O Casé, ouvindo a ordem do meu pai, se mandou para buscar o tal cuscuz...
Tem um ditado que diz que “quando o cão não vem, manda o secretário” e desta vez, o Casé foi o "secretário do cão". Enquanto esperava a Sebasta terminar de cozinhar o cuscuz, ele pegou uma espingarda “soca-tempero” (arma de fabricação caseira, que o "homem da roça" usa para caçar passarinhos), mirou numa galinha, que ciscava no meio do terreiro, e puxou o gatilho. Nada aconteceu... Então o Casé deduziu o lógico: "está descarregada...".
Minutos depois, aparece a Sebasta, trazendo o cuscuz nas mãos. Casé, mirando a espingarda no cuscuz, que estava nas mãos da Sebasta, disse:
- Sebasta, já pensou se esta espingarda tivesse carregada?
Disse isto e puxou o gatilho. O que se ouviu e foi um estampido, seguido de pedaços de cuscuz voando para tudo quanto era lado! A espingarda estava carregada. Da primeira vez, ela tinha falhado, tinha "quebrado côco", como diz o matuto.
Felizmente, o cara era bom de pontaria e a Sebasta não sofreu nada!
Depois do tiro, Casé começou a chorar, antevendo a tremenda pisa que ia levar (o meu pai era mais grosso do que papel de embrulhar pregos)... Casé só se acalmou quando a Sebasta disse que ia fazer outro cuscuz e jurou que nunca ia contar ao papai o que tinha acontecido. Promessa feita pela Sebasta e aceita pelo meu irmão.
Para encurtar a conversa, quando Casé chegou com o cuscuz, o meu pai foi logo perguntando, com aquela educação que Deus não lhe deu:
- Casé, que peste você foi que houve? Por que você demorou tanto?
Casé, meio sem graça, respondeu:
- Foi a Sebasta, papai, que acordou tarde e ainda tava ralando o milho.
O meu pai começou a comer o cuscuz, mas não parava de resmungar, baixinho:
- Sei não... Estou desconfiado desse cuscuz, ele está com um gosto estranho...
Quando papai saiu, eu perguntei ao Casé porque ele tinha demorado tanto. O meu irmão me contou tudo e disse que achava que papai tinha sentindo um gosto estranho no cuscuz porque a Sebasta tinha aproveitado parte da massa do cuscuz atingido pelo tiro, para fazer o novo cuscuz.
O papai faleceu e nunca soubemos se a Sebasta cumpriu a sua promessa de segredo.
Como "conheço o meu gado", acho que a desconfiança do meu pai com a demora do Casé naquele dia, não foi nada por causa do gosto do cuscuz; acho que ele ficou com uma pulga atrás da orelha, se perguntando:
- Será que o meu filho também anda comendo o "cuscuz" da Sebasta?
Até hoje, somente o Casé sabe a resposta...

domingo, 2 de março de 2025

PÉ DE CHUMBO

Texto de Aloisio Guimarães

O meu irmão Casé, já perto dos seus 60 anos, tinha um medo danado de avião e por isso mesmo nunca tinha voado. Como ele não conhecia São Paulo, aproveitei que eu sempre ia à capital paulista visitar minha filha, onde ela fazia Residência Médica, resolvi levar Casé comigo, nem que fosse amarrado. De uma tacada só, Casé viveu grandes emoções: andou de avião, conheceu São Paulo e assistiu a uma corrida de Fórmula 1, em Interlagos (no domingo, dia 15/11/2015). Só não foi possível assistir um jogo de futebol porque o calendário do campeonato brasileiro tinha sido alterado devido a um jogo da seleção brasileira pelas eliminatórias da Copa do Mundo.
Por conta disso tudo, me lembrei de um causo que dizem ter ocorrido muitos anos atrás...
Antes, porém, para quem não é acostumado à vida rural, fique sabendo que o nosso matuto, quando quer fazer o famoso “número dois”, ou dar a sua “cagadinha”, popularmente falando, ele simplesmente avisa: “Vô ali, no mato, vorto já”.
Isto posto, vamos ao acontecido:
Nos anos 60, José Miguel, mais conhecido como “Pé de chumbo”, era um matuto que morava em Lagoa do Félix, povoado situado entre Igaci e Arapiraca. Plantador de fumo, numa época em que o fumo dava dinheiro, ”Pé de Chumbo” jamais tinha se ausentado do estado, muito embora vivesse “nadando em dinheiro”. Hoje, como é proibido fumar em quase tudo que é lugar, quem planta fumo está é “levando fumo”. E foi por ele nunca ter viajado, por nunca ter saído da sua pacata Lagoa do Félix, que botaram o apelido nele de “Pé de chumbo”: um sujeito difícil de sair do lugar, de se mover. 
Os amigos, que viam o tempo passar e “Pé de chumbo” sempre naquela mesmice da vida rural, sempre lhe aconselhavam:
- Pé de Chumbo, hômi, vá viajá. Vá conhecê o mundu! A vida é curta, hômi!
De tanto encherem o saco do cara, ele resolveu ouvir os conselhos dos amigos...
- Apôis bem, já qui ôces queri, vô viajá, mas vô logo butando prá derretê: vô di avião!
E assim foi feito. Malas prontas, “Pé de chumbo” se mandou para Maceió, pegar o “asa dura”, como o avião era apelidado antigamente, e se mandar para o Rio de Janeiro.
Acontece que antes de viajar, ele se empanturrou com o almoço gorduroso que Filomena, sua mulher, preparou. Tinha de tudo: de galinha de capoeira a costela de porco, assada na brasa, tudo "regado" a umas doses de cachaça.
Pois bem, logo nos primeiros minutos, tão logo o avião partiu do Aeroporto Zumbi dos Palmares, “Pé de Chumbo” começou a passar mal, com náuseas, querendo vomitar e com uma cólica da gota serena. Quando não mais aguentava de tanta cólica, ele sentiu que era a hora de “arriar o barro”. Desesperado, não aguentando mais segurar a onda, “Pé de Chumbo”, correu até a aeromoça e perguntou:
- Mulé, pur Nossa Sinhora, adondi pesti é o “mato” dessa disgraça?

Como a aeromoça não entendeu o que era "mato", não deu tempo: "Pé de Chumbo" fez o "serviço" nas calças mesmo!