Texto
de Carlito Lima
Meus netos estão se empanturrando de chocolate, para alegria da
Nestlé, da Garoto, dos chocolateiros e dos netos. Essa invencionice comercial, venda
da “comida dos deuses” durante a Páscoa, está definitivamente institucionalizada
pela propaganda massiva. Nossos netos veem o ovo de chocolate e o coelho como
símbolos da semana da paixão e morte de Cristo. Um período mais apropriado à
meditação, à oração, tornou-se a festa do chocolate.
Os marqueteiros não combinaram com a Igreja, tão conservadora nos
assuntos sobre sexo, pois, coelho é o símbolo de procriação, de fertilidade, de
muitas transas, e chocolate é alimento afrodisíaco. Portanto, os símbolos da
semana santa moderna, inventados pelo comércio, são apologias ao sexo, acho
ótimo, é uma evolução da Igreja sempre castradora em sua história.
Juntar coelho com ovo de chocolate deu samba de crioulo doido. Meu
neto perguntou porque o ovo de coelho é de chocolate e o da galinha é de
cozinha. Foi difícil explicar.
Nessa hora sou saudosista das tradições, tenho boas recordações da
semana santa de meu tempo de criança.
Iniciava no Domingo de Ramos quando se comemora a entrada triunfal de
Jesus em Jerusalém montado em um burrico. Seus discípulos trouxeram dois
burricos puseram em cima deles suas vestes, sobre elas Jesus montou. A multidão
cortou ramos de oliveiras, espalhou-os pela estrada, formando um tapete de
folhagem para o Rei dos Reis passar, em cima de um jerico. O povo acompanhava
Cristo, clamava: “Hosana ao filho de
Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana nas maiores alturas!”
Entrando Jesus em Jerusalém, toda cidade se alvoroçou. Perguntavam Quem é este?
E a multidão clamava: “Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia.” Assim li,
aprendi, escrito na Bíblia.
Essa parte da história de Cristo é muito emblemática. Entrada
triunfal num jerico, logo depois, traído e crucificado. Entretanto, para
meninada dos anos 50, o melhor do Domingo de Ramos era a procissão. Iniciava na
Catedral, os colégios femininos religiosos compareciam: São José, Sacramento,
desfile de meninas bonitas, a moçada ia para paquerar. Um olhar, um sorriso, um
piscar de olho valia a pena a missa, a procissão.
O feriado começava na quinta-feira santa, a partir desse dia
proibia-se comer carne, em compensação minha mãe cozinhava um delicioso bacalhau,
arabaiana, camarão, feijão no coco, jerimunzada, bredo, uma delícia. Por que essa
maravilhosa comida só existe na Semana Santa?
Na noite da quinta-feira havia uma brincadeira perigosa. A meninada
saía em bando, 5 a
6 moleques para “serrar velho”. A serração do velho é uma tradição europeia
conhecida desde o século XVIII. Reunia-se um grupo de brincalhões, diante da
casa de um velho, na noite da quinta-feira. Serravam uma tábua com muito ruído,
muito choro, muito lamento. Os velhos serrados irritavam-se com a brincadeira.
Pela crença popular, velho serrado não chegava à outra Quaresma. A garotada
cantava alto acordando a vizinhança: "As almas do outro mundo, vieram lhe
avisar que deste ano o senhor não vai passar”. "Encomende a alma a Deus,
que seu corpo já não vale nada" e liam um bem humorado testamento em versos. Os velhos ficavam
brabos. Certa vez levamos uma carreira do pai do Toroca na Pajuçara. Seu Pádua
um velho ranzinza da Avenida, quando estávamos divulgando seu “testamento”,
jogou um penico cheio de xixi, tive que ir para casa tomar um demorado banho.
Houve caso de tiro.
Na Sexta-feira da Paixão parecia que o mundo havia se acabado. As
rádios só tocavam músicas fúnebres, proibido ir à praia, até sorrir. As prostitutas
fechavam as portas de Jaraguá e o balaio; nem pensar numa fortuita transada. À
noite todos iam à Igreja para beijar os pés de Nosso Senhor morto. Finalmente o
sábado de aleluia. A meninada preparava um boneco de pano, o judas, sempre com
um nome de algum político ou algum inimigo público. Quando às 10 horas, os
sinos da Igreja dobravam anunciando a aleluia, a moçada caía de cacete malhando
o judas amarrado em um poste. Melhor do
que malhar um judas, era roubar os judas dos vizinhos, dos pivetes.
Afinal chegava o domingo da ressurreição. Os padres contavam a
história como Cristo depois de morto subiu aos céus. Hoje é um espetáculo
pirotécnico com atores globais, para se assistir comendo chocolate, tomando
vinho.
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