Desde o primeiro dia me encantei com os olhos cinzas, pareciam duas ximbras (bola de gude) de minha infância. Duas ximbras, duas contas pequeninas, duas pedras preciosas. Cabelos louros batiam nos ombros, esvoaçavam ao vento, nariz arrebitado, ajudavam o belo sorriso a contagiar a áurea da felicidade de quem tem 17 anos.
Nossos olhos, nossos sorrisos, se cruzaram várias vezes. Fiquei rodando a sala de visitas sem necessidade, aliás, havia necessidade, olhar aquela bonita menina, prolonguei o tempo da visita. Na hora da despedida, o pai agradeceu a gentileza, ela apertou-me a mão olhando nos olhos, “Obrigada, tenente”.
O tempo e o convívio tornaram-me amigo dos presos, mandavam recados, pediam alguma coisa. Às vezes eu me encontrava com seus familiares, minha modesta contribuição, um bilhete, uma notícia, necessidades para que levassem nas próximas visitas, coisa amena no meu entender, contudo, de uma extraordinária importância para eles, só depois tive consciência de minhas traquinagens clandestinas, generosas.
Nunca alguém pediu um favor no contexto político. Até porque eu poderia ser espião ou coisa parecida. Na verdade os comunistas tentavam revolucionar o mundo implantando a ditadura do proletariado, entretanto, a maioria dos presos eram cidadãos idealistas, liberais, tinham seus empregos, exerciam sua cidadania, vontade de mudar o mundo, um Brasil melhor, mais justo, convergiam com os meus ideais.
Na segunda-feira recebi recado solicitando comparecer à noite no Restaurante Torre de Londres, Parque 13 Maio, Centro do Recife.
Ao chegar alegrei-me ao ver a menina dos olhos de ximbra junto às famílias dos presos políticos. Eu ouvia atentamente os recados, olhando disfarçadamente a bela jovem. Os familiares perceberam meus olhares com o rabo do olho para a menina dos olhos de ximbra.
Tudo aconteceu depressa, em pouco tempo eu estava namorando de mãozinhas dadas na porta de sua casa. O tenente namorando a filha de um preso político, seu carcereiro na prisão do quartel da Segunda Cia de Guardas.
Amigos souberam do inocente namoro, um tenente comentou, eu tinha coragem de mamar em onça, aconselhou, acabe o namoro, tem tanta menina no Recife, não falta namorada. O preso, pai da moça, ficou meio arredio quando soube, não gostou, foi contra o namoro. Nosso romance tornou-se o "Romeu e Julieta" chinfrim do início da ditadura.
Não me importei, continuei frequentando a casa da namorada. Nos dávamos bem, namoro ingênuo, infantil para os dias de hoje, entretanto, pra mim era importante, precisava do ambiente familiar, de uma namorada decente, eu só andava em casas de mulheres, viciado em rapariga.
Passaram-se três meses, certo dia fui chamado ao IV Exército, falar com o general comandante. Eu tinha certeza do motivo. Ao vê-lo me apresentei, baixei a continência, ele perguntou.
- Tenente, tenho informações que você está namorando a filha de um preso político, preso na Segunda Cia de Guardas, seu quartel. É verdade?
- É verdade sim senhor.
- Tenente, tenho outras informações confidenciais sobre sua conduta com presos políticos, mas esse namoro não admito. Não admito que um tenente do meu Exército, verde oliva, namore a filha de um filha da puta de um preso político, comunista. Acabe esse namoro... Pode se retirar.
Fiz a continência devida, dei meia volta, bati com o pé direito no chão, caminhei em passos normais, ao chegar perto da porta, sentindo-me covarde, humilhado, voltei ao general, saiu instantaneamente o desabafo.
- General, com todo meu respeito, esse assunto é minha vida particular, cabe a mim decidir, não acabo o namoro.
- Saia daqui agora mesmo! - gritou o general vermelho de raiva.
Coincidência ou não, uma semana depois, foi publicada no Noticiário do Exército minha transferência do Recife para a Amazônia, aonde passei dois anos de minha vida na fronteira de Roraima entre índios. Castigo maravilhoso, inesquecível minha época de selva. As amazonenses fizeram esquecer a menina dos olhos de ximbra.
Fragmentos do livro "CONFISSÕES DE UMA CAPITÃO"
Breve em 2ª edição e edição em espanhol.
Breve em 2ª edição e edição em espanhol.
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