Irmãos, desmoralizemos
definitivamente o curriculum-vitae. Uma das coisas antipáticas dos nossos dias
relaciona-se com o chamado CURRICULUM. Sem querer mostrar sabença, o nominativo
neutro da segunda declinação latina, mais o genitivo da primeira declinação,
encerram o verdadeiro espírito de superficialidade em que vivemos - antes da
chegada da Era de Aquarius.
Vivemos um tempo predominantemente
revelador de aparências, de falsificações, de brilhareco apenas, encobrindo o
centro das coisas, o coração da realidade, a essência da vida e da cada um.
Entre as aparências mais detestáveis
e mentirosas com que se veste o homem moderno - cada vez mais vazio de dons e
de si mesmo - está o indefectível Curriculum Vitae. Todo mundo, que conduz na
mão, a varinha mágica de ser importante e genial, vive noite e dia preocupado
em aumentar seu Curriculum com baboseiras, besteiras, falsificações. E nele,
lógico, só se colocam as faixas decorativas, a vitória aparente e os sucessos
promocionais de si mesmo.
Todo Curriculum Vitae deveria ter,
imprescindível, o lado sombra, o lado humano verdadeiro, de cada um. Nele
deveria constar quantas vezes o cara foi cruel, desumano; quantas vezes cometeu
trambiques com o próximo, puxando-lhe o tapete, com jeito, para a queda sonora;
quantas vezes foi desonesto, vingativo, espírito-de-porco, mentiroso, essas
pequenas delicadezas do pecado, comuns safadezas que formam o inegável
currículo da alma humana.
Mas, não. O que se vê é o contrário:
há certos donos de currículo (em português mesmo), diante dos quais a gente
pensa estar vendo Napoleão Bonaparte. Contemplando as pirâmides do Egito. Ou
melhor: a própria glória dos deuses que por acaso condescenderam em descer do
Olimpo para conviver um pouco com nós, os humanos.
Currículos que são verdadeiros
calhamaços, papiros de vaidade malsã, vergastados de alusões, ablusões,
ilusões, colisões, virtudes inexcedíveis. O sujeito foi tudo na vida, mas ao
morrer, ninguém se lembrará dele. Porque não deixou nada senão o Curriculum
Vitae.
Há pessoas que vivem para
administrar a própria glória. São seus próprios empresários. Locatários de sua
vaidade como se enxergam mais do que são... Dois, três minutos de conversa,
eles se projetam com a força e a violência de um meteoro incandescente. E
passam.
Fernando Pessoa, que era um gênio,
dizia que só havia dois fatos importantes na vida dele (e logo ele que foi um
dos grandes poetas de todos os séculos): o dia em que nasceu e o dia em que ia
morrer. No meio... a vida de toda gente.
Isso com um espírito que alcançou a
sublimação dos instantes. Mas a gente encontra por aí uns capadócios, metidos a
cavalo de Tróia, ruminando importância e vulgaridade, pensando a vida inteira
em negociar seu Curriculum Vitae, aumentando-o ad infinitum, ad absurdum e ad
nauseam.
Enfim: o meridiano mais curto que
leva à mediocridade de espírito passa pelo Curriculum Vitae. Valeria apenas, se
houve sinceridade total, em sua elaboração, saber se dele consta: tive duzentas
cólicas, desalojei um amigo do cargo para tomar-lhe a dianteira; veiculei o
veneno de três notícias contra três companheiros; intriguei varias pessoas sem
aparecer; tive dez panarícios e já arranquei dez dentes podres. Aí, valeria.
Contudo, seria impossível. Todos conhecemos o que se chama de vaidade humana.
Como ela é cavada em única forma vital para que nos realizemos - Como na ilusão
- neste tão pouco divertido vale de lágrimas e outras coisas impublicáveis.
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