quinta-feira, 8 de outubro de 2015

RÁS GONGUILA

Texto de Carlito Lima

Uma cidade não é feita apenas de prédios, ruas, avenidas, praias, parques, praças e jardins. Ela é feita, sobretudo, pelos habitantes, pelas histórias, pelas tradições. Devemos dar valor às pessoas, desde a Maria do cafezinho no escritório ao governador do Estado, somos única massa, única sociedade, injusta, mas somos.
Figuras marcantes dessa cidade de Nossa Senhora dos Prazeres, tornaram-se lendárias pela personalidade, originalidade, trabalho e coragem.
A história oficial contará a vida dos fidalgos, políticos, artistas e intelectuais. As figuras humildes, anônimas, porém, importantes na vida cultural, econômica e política da cidade, são esquecidas na história oficial.
No século passado, um negro forte, alto, marcou nossa comunidade, Rás Gonguila, dizia-se príncipe, descendentes de Reis e Rainhas da Etiópia, trazidos escravos, tornaram-se lideres, fugiram com Zumbi, formaram a República dos Palmares. Gonguila tinha maior orgulho de sua ancestralidade e de seu título nobiliárquico africano, Rás.
Exímio engraxate, cadeira na Rua do Comércio, clientela conhecida, políticos, funcionários, poetas, escritores, ficavam esperando a graxa, conversando. O ponto da graxa tornou-se encontro de desocupados.
Gonguila alegre, divertido, carnavalesco, criou, administrou, comandou o bloco "Cavaleiro dos Montes". Todo ano saía à frente do bloco arrastando multidão, orquestra de frevo tocando “Vou Botar Fora”, “Vassourinhas”. A moçada caía no passo. Bloco de carnaval, único nivelador da sociedade, misturavam-se pedreiros, engenheiros, médicos, enfermeiros, desempregados, filhinhos de papai, prostitutas, soldados.
O Negão morava na Ponta Grossa, cidadão respeitado. Na época não havia associação de moradores, os líderes lutavam pela melhoria de vida de sua comunidade.
Na eleição de 1950, Theobaldo Barbosa, assessor de Arnon de Mello, candidato a governador, havia feito contato com Gonguila de muita ascendência sobre os apanhadores, catadores de sururu da Ponta Grossa, Vergel do Lago, na beira da Lagoa Mundaú. Arnon se dispôs a visitá-lo. O encontro foi marcado.
Na hora exata, Arnon e Theobaldo desceram do carro ao lado de um mal iluminado galpão, onde a turma aguardava reunida. Arnon vendo no lusco-fusco a figura do líder, avantajada estatura, de branco, negro de lábios grossos, nariz chato, perguntou em voz baixa a Theobaldo como era mesmo o nome do cidadão. Nisso a figura vem se aproximando dos dois políticos, Theobaldo, então, cochicha no ouvido de Arnon:
- Gonguila...
No momento da resposta de Theobaldo, gritavam “Viva Dr. Arnon!”;  a plebe ignara respondia “Viva!”. Arnon ouviu mal o Theobaldo, não teve tempo de cotejar. Gonguila estendeu-lhe a mão dando:
- Boa noite.
Arnon ofereceu também sua mão num respeitável cumprimento, dizendo:
- Boa noite, seu Gorila.
Gonguila não teve dúvida, retrucou firme e de bom tom:
- Gorila é a puta que o pariu, Arnon! Meu nome é Gonguila, Rás Gonguila!
Apesar das caras amarradas, alguém soltou uma gargalhada, quebrou o gelo. Arnon desculpou-se, deu um abraço forte no Negão, conversou com os catadores, catou os votos. Teve excelente votação no reduto do inimigo, governador Silvestre Péricles, ganhou a eleição, tornou-se governador do Estado.
Políticos durante campanha eleitoral procuravam Gonguila. Candidatos a vereador, prefeito, deputado, até presidente, disputavam o apoio. Na campanha à Presidência da República houve um comício pró Getúlio Vargas na Ponta Grossa, perto do cine Lux. O comício bem organizado, muitos oradores à cata de votos no populoso bairro. Certo momento, anunciaram o líder comunitário, o carnavalesco Rás Gonguila. Entregaram o microfone ao Negão. Ele não se fez de rogado, arrochou a voz em tom alto, gritando.
- Amigos da Ponta Grossa, O Doutor Getúlio é o pai dos trabalhadores do Brasil. Getúlio é o maior brasileiro vivo, merece nosso voto...
Um bêbado, colega de copo de Gonguila, assistia o comício embaixo do caminhão. Impressionado com tantos elogios ao Dr. Getúlio, do chão, gritou debochado, gozando o amigo:
- Dá o cu a ele, Gonguila!
O Negão parou a fala, olhou para baixo, identificou o bêbado, apontou o dedo para o amigo, gritou alto ao microfone.
- Como o seu, e o dele!
O animador puxou o microfone de Gonguila, continuou o comício:
- Depois das brilhantes palavras de nosso Rás Gonguila, vamos ouvir agora o deputado Ari Pitombo!
Assim era o Negão, não tinha papa na língua, nem se intimidava com figurões. Apesar de analfabeto, preto, pobre, impunha respeito por sua liderança, honestidade, amor à cidade de Maceió. Os nomes dos grandolas daquela época estão nas placas de ruas, colégios, praças. O nome de Gonguila resta apenas em lembranças, em alguns corações anônimos, amantes dessa cidade.

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