terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

MEMÓRIAS

Adaptação Aloisio Guimarães

Nasci e cresci em Palmeira dos Índios, interior de Alagoas, numa época em que estudávamos em ótimas escolas públicas e deveríamos sempre tirar notas azuis no Boletim Escolar. Estudei no saudoso Educandário Sete de Setembro, o famoso "Colégio de Dona Rosinha", conhecido pela rigidez do ensino e disciplina imposta aos alunos. Tínhamos uma caderneta para anotação de "presente", "ausente" ou "atrasado". Cantávamos o Hino Nacional no pátio escola antes de irmos para a sala de aula, onde ficávamos em fila indiana, à porta da sala, esperando a professora chegar e nos mandasse entrar. Em sinal de respeito e educação,  quando chegava qualquer pessoa à sala de aula, éramos obrigados a se levantar e só sentávamos novamente quando a professora mandava. Ninguém voltava para casa sem dar a lição à professora, pequenas perguntas que ela nos fazia para mostrarmos que havíamos aprendido o que nos tinha ensinado. No final do Ensino Primário (hoje, Ensino Básico), tínhamos que fazer o Exame de Admissão, uma espécie de vestibular, porque o número de escolas era insuficiente e, consequentemente, faltavam vagas para todos os alunos cursarem o Ensino Ginasial (hoje, Ensino Fundamental). As pesquisas escolares eram feitas na biblioteca da própria escola, nas bibliotecas públicas e nas enciclopédias (quem tinha a Enciclopédia Barsa era o "cara") e os trabalhos eram escritos à mão, em folha de papel pautado e com a capa feita com cartolina. As aulas de Educação Física eram de verdade e o professor colocava a gente para correr e suar muito. Jogávamos futebol no pátio da escola, com tampa de garrafa ou bola de meia. Até hoje lembramos quando a professora usava mimeógrafo para tirar cópias das provas e aquele cheiro do álcool tomava conta da sala. Não existia merenda escolar, o nosso lanche era levado de casa, na lancheira ou dentro de um saco de pão, e ingerido com um copo de Q-suco de uva ou groselha. Não tínhamos Bolsa Família, mas tínhamos uniformes completos e material escolar comprados pelos nossos pais, com muito suor: meia preta (uso obrigatório, com direito a chulé), calçado Vulcabrás, Conga, Bamba ou Kichute. Quantas saudades do Colégio Pio XII e do Colégio Estadual Humberto Mendes...

Todo mundo tinha apelido. Na turma da escola tinha o Cabeludo, o Gordo; o Magrela, o Branco Azedo; Quatro Olhos; o Baixinho; a Olívia Palito; o Palitão; o Cabelo de Bombril; o Negão; o Narigudo, a Girafa, o Marciano; o Broca; o Chupa, o Bodinho... Já entre os amigos, tinha Bilica, Nêgo Cláudio, Pota, Colchão, Pitôta, Mingau, Macaco, Galo Cego, Côlôlô, Casé, Papagaio, Marçolita... Às vezes até brigávamos, mas logo estava tudo resolvido e seguia a amizade. Era tudo brincadeira e ninguém se queixava de bullying. Existia o valentão, mas também existia quem defendesse o mais fraco da turma. Não importava se meu amigo era negro, branco, pardo, rico, pobre, menino, menina, todo mundo brincava junto e como era bom. Bom não, era maravilhoso! Comíamos na casa dos colegas e quando chegávamos em casa tomávamos esporro por isso: “Não tem comida em casa?” 

Que saudades dos refrigerantes Crush, Fratelli Vita, Mirinda...

Como eram bons os campeonatos de futebol de salão, com disputas acirradas entre os times da AABB, do Colégio Pio XII e do Colégio Estadual Humberto Mendes!

Que saudades dos desfiles das escolas do dia 7 de Setembro, na Praça da Independência, palco de grandes disputas entre as fanfarras do Colégio Pio XII e Colégio Estadual Humberto Mendes...

Época em que ser gordinho(a) era sinal de saúde e, se fosse magro, tínhamos que tomar o Biotônico Fontoura. Tempo da emulsão de Scott, do leite de magnésio, do lambedor caseiro, do mastruz com leite, do mercúrio cromo e do Neocid no cabelo (para matar piolhos). Época em que nossa única dor era quando mamãe passava merthiolate nos ferimentos. Um tempo em que a gonorreia era considerada uma doença "braba". Tempo em que nós, os meninos, morríamos de medo do "papa-figo", do "lala urso", do "bicho-papão"...

A frase "Peraí, mãe" era para ficar mais tempo na rua e não no computador ou no celular. Ficávamos na rua até tarde, brincando de garrafão, de subir em árvores, de roubar bandeira, de polícia e ladrão, jogando bola, andando de bicicleta ou carrinho de rolimã, soltando pipa, jogando bolinha de gude, jogando pião, jogando enfinca... Muitas vezes com a mãe tomando conta, olhando pela janela. Durante a safra de caju, jogávamos castanha, com dinheiro feito com papel de cigarros.

Colecionávamos álbum de figurinhas e bolinha de gude. As brincadeiras eram saudáveis; brincávamos de bater em figurinhas (bafo-bafo) e não nos colegas e professores.

Que saudades do carnaval na Praça da Independência, do parque de diversão nas festas de natal, da fogueira de São João, das Festas da Primavera na Praça das Casuarinas, das vaquejadas no Parque São José...

Que saudades desse tempo, em que a chuva tinha cheiro de terra molhada, dos gostosos banhos de chuvas, mesmo debaixo de raios e trovões, onde a gente fazia pequenas barragem de terra para conter enxurrada.

Que saudades das matinês no Cine Moderno, no Cine São Luiz ou no Cine Palácio, onde esperávamos ansiosamente pela continuidade das "séries" (espécie de novela) que passavam antes do filme começar. Ah, antes de entramos fazíamos as tradicionais trocas de revistas em quadrinhos, porque na cidade não existia banca de revista.

Que saudades dos jogos do CSE, no campo de terra batida do estádio Edson Amaro; hoje, Juca Sampaio...

Nossos pais eram presentes, mesmo trabalhando fora o dia todo. As refeições eram feitas com a família toda reunida à mesa. A educação moral era em casa. Ai de nós se mamãe tivesse que ir à escola por termos aprontado alguma coisa. O chicote vadiava. Nada de chegar em casa com algo que não era nosso. Desrespeitar alguém mais velho ou se meter em alguma conversa, era um tapa nos beiços ou então aquele olhar de quem diz "quando chegar em casa conversamos". Já sabia que iria apanhar. Tínhamos que levantar para os mais velhos sentarem.

Não tínhamos energia como os dias de hoje. A nossa luz elétrica vinha de um gerador, que desligava às 22 horas, após três piscadas de aviso de desligamento. Onde quer que estivessem, as crianças, ao receber o primeiro aviso, corriam para casa, com medo do escuro. Não existiam os eletrodomésticos dos dias atuais. O fogão era de lenha, a geladeira, para os pobres, era um pote de água na cozinha e, para os ricos, uma geladeira movida a querosene. Telefone celular nem pensar. Aliás, o telefone fixo só apareceu anos depois, e para os ricos. Não existia a facilidade do hoje. Para ligar de Palmeira dos Índios para Arapiraca, por exemplo, era necessário ir à Telasa, operadora de telefonia, e agendar uma ligação: você pedia uma ligação pela manhã e só conseguia falar à noite. Poucas famílias tinham televisão, que recebiam o sinal das emissoras de Pernambuco. Nessa época, os aparelhos de televisão eram à válvula e necessitavam de um tempo para esquentar e a imagem aparecer. A imagem era péssima; na maioria das vezes, só "chuviscos", e, quando víamos as faces dos artistas, dizíamos que "hoje, está um cinema". O pessoal da minha rua assistia "televizinho", na calçada da casa de "Seu" Mancinho, que lotava todas as noites acompanhar a novela "O Sheik de Agadir" e programas como "A Jovem Guarda", com Roberto Carlos e cia, o Pica-Pau; Tom e Jerry; a Pantera Cor de Rosa; Papa Léguas; Rim Tim Tim, Zorro; Corrida Maluca, Perdidos no Espaço, O Vigilante Rodoviário e vários outros...

Éramos felizes, comparado ao mundo de hoje, onde tudo se torna bullying e socialmente incorreto. Não conheço ninguém que tenha ficado complexado por ter passado por tudo isso. Pelo contrário, quase sua totalidade são verdadeiros homens de caráter.

Fico me perguntando quando foi que tudo mudou e estes valores se perderam. Sinto pena dessa geração atual, presa nas casas e apartamentos, viciada em redes sociais que nada valem e nada de bom ensinam. Sinto pena dessa geração que não pode brincar verdadeiramente.

Muita pena...

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