PROFESSOR UNIVERSITÁRIO E ESCRITOR

A sentença a que me reporto veio a se tornar muito conhecida porque
pessoas encarregaram-se de espalhá-la: por xerox, primeiramente; depois por
mimeógrafo; depois por e-mail; finalmente, veio a ser estampada em sites da
internet. Primorosos trabalhos de arte foram produzidos a partir do caso, por
pessoas que não conheço pessoalmente: Odair José Gallo e Mari Caruso Cunha
(versões sonoras e com imagens).
A protagonista do caso judicial chamava-se Edna.
Hoje, aos 74 anos, a memória visual me socorre. Sou capaz de me
lembrar do rosto de Edna e do ambiente do fórum, naquela tarde de nove de
agosto de 1978, há trinta e dois anos, portanto. Uma mulher grávida e anônima
entrou no fórum sob escolta policial. Essa mesma mulher grávida saiu do fórum,
não mais anônima, porém Edna, não mais sob escolta, porém livre.
Após ouvir, palavra por palavra, o despacho que a colocou em
liberdade, Edna disse que se seu filho fosse homem ele iria se chamar João
Batista. Mas nasceu uma menina, a quem ela colocou o nome de Elke, em homenagem
a Elke Maravilha.
Edna declarou no dia da sua liberdade: poderia passar fome, porém
prostituta nunca mais seria.
Passados todos estes anos, perdi Edna de vista. Nenhuma notícia
tenho dela ou da filha. Entretanto, Edna marcou minha vida. Primeiro, pelo
resgate de sua existência. Segundo, pela promessa de que colocaria no filho por
nascer o nome do juiz. Era o maior galardão que eu poderia receber, superior a
qualquer prêmio, medalha, insígnia, consagração, dignidade ou comenda.
Lembremo-nos de Jesus diante da viúva que lançou duas moedinhas no cesto das
ofertas: Eu vos digo que esta pobre viúva lançou mais do que todos, pois todos
aqueles deram do que lhes sobrava para as ofertas; esta, porém, na sua penúria,
ofereceu tudo o que possuía para viver. (Lucas, 21, 1 a 4). Edna era humilde e
pobre. Sua maior riqueza era aquela criança que pulsava no seu ventre. Ela não
me oferecia assim alguma coisa externa a ela, mas algo que era a expressão
maior do seu ser. Se a promessa não se concretizou isto não tem relevância,
pois sua intenção foi declarada. O que impediu a homenagem foi o fato de lhe
ter nascido um menino. Em razão do que acabo de relatar, se eu encontrasse
Edna, teria de agradecer o que ela fez por mim. Edna me ensinou a ser juiz.
Edna me ensinou que mais do que os códigos valem as pessoas. Isso que eu
aprendi dela tenho procurado transmitir a outros, principalmente a meus alunos
e a jovens juízes.
Segue-se a íntegra da decisão extraída da folha 32 do Processo
número 3.775, da Primeira Vara Criminal de Vila Velha:
A acusada é
multiplicadamente marginalizada: por ser mulher, numa sociedade machista; por
ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de terra dos versos imortais do
poeta; por ser prostituta, desconsiderada pelos homens, mas amada por um
Nazareno que certa vez passou por este mundo; por não ter saúde; por estar
grávida, santificada pelo feto que tem dentro de si, mulher diante da qual este
juiz deveria se ajoelhar, numa homenagem à Maternidade, porém que, na nossa
estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho
na cadeia.
É uma dupla
liberdade a que concedo neste despacho: liberdade para Edna e liberdade para o
filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana,
sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo
tão injusto com forças para lutar, sofrer e sobreviver.
Quando tanta gente
foge da maternidade; quando milhares de brasileiras, mesmo jovens e sem
discernimento, são esterilizadas; quando se deve afirmar ao mundo que os seres
têm direito à vida, que é preciso distribuir melhor os bens da Terra e não
reduzir os comensais; quando, por motivo de conforto ou até mesmo por motivos
fúteis, mulheres se privam de gerar, Edna engrandece hoje este Fórum, com o
feto que traz dentro de si.
Este Juiz renegaria
todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios, trairia a memória de sua
Mãe, se permitisse sair Edna deste Fórum sob prisão.
Saia livre, saia
abençoada por Deus, saia com seu filho, traga seu filho à luz, que cada choro
de uma criança que nasce é a esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais
puro, algum dia cristão.
Expeça-se
incontinenti o alvará de soltura.
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