terça-feira, 1 de setembro de 2020

O TESTAMENTO

Texto de Urbano Reis

Não tendo, como não tenho e nunca tive ninguém, pra quem é que vou deixar tudo o que tenho: os meus bens?
Pra quem é que eu vou deixar, se fizer um testamento, minhas calças remendadas, meu céu, minhas estrelas, que não me canso de vê-las ao relento, deitado, deixo o olhar perdido, distante, no firmamento?
Se eu fizer um testamento, pra quem é que eu vou deixar minha camisa rasgada, as águas dos rios, dos lagos, águas correntes, paradas, onde, às vezes, tomo banho?
Pra quem vou eu deixar, se eu fizer um testamento, os meus bandos de pardais que, ao entardecer, nas árvores, brincando de esconde-esconde, procuram se divertir?
Pra quem eu vou deixar estas folhas de jornais que uso para me cobrir?
Pra quem eu vou deixar, se fizer um testamento, vagalumes que em rebanho cercam meu corpo, à noite, quando o verão é chegado?
Se eu fizer um testamento, pra quem vou deixar, mendigo assim como sou, todo o ouro que me dá o sol que vejo nascer quando acordo na alvorada? O sol que seca meu corpo que o orvalho da madrugada, com sua carícia molhou?
Se eu fizer um testamento, pra quem vou deixar meu chapéu todo amassado, onde escuto o tilintar das moedas que me dão os que têm a alma boa, os que têm bom coração?
Pra quem eu vou deixar, antes que a vida me largue, o grande estoque que tenho das palavras “Deus lhe pague”?
Pra quem eu vou deixar, se fizer um testamento, todas as folhas de Outono que, trazidas pelo vento, vem mês pés atapetar?
Se eu fizer um testamento, pra quem é que vou deixar minhas sandálias furadas, que pisaram mil caminhos, cheias de pó das estradas, estradas por onde andei em andanças vagabundas?
Para quem vou deixar minhas saudades profundas dos sonhos que não sonhei?
Se eu fizer um testamento, pra quem vou deixar meu cajado, meu farnel e a marca deste beijo que uma criança deixou em meu rosto, perguntando se eu era Papai Noel?
Pra quem vou deixar, se fizer um testamento, este pedaço de trapo que no lixo encontrei e que transformei em lenço para enxugar minhas lágrimas, quando “fingi” que chorei?
Pra quem vou deixar, se fizer um testamento, os bancos destes jardins onde durmo e onde acordo entre rosas e jasmins?
Pra quem vou deixar todos os raios de luar que me beijam cada mão, quando num canto da rua eu as ergo em oração?
Se eu fizer um testamento, testamento não farei desses de papel passado, que papeis eu não ligo...
Agora estou resolvido: o que tenho deixarei na situação que me estou, pra qualquer outro mendigo, rogando a Deus que o faça, depois que tenha morrido, ser tão feliz como eu sou.

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