ENGENHEIRO AGRÔNOMO E ESCRITOR
Manoel João possuía
feições arianas, contrastando com a cor morena dos demais moradores daquela
pequena cidade alagoana, Coruripe, tingidos pelo sol escaldante tropical e pelo
sal iodado do mar do Pontal, oriundos da miscigenação de raças, com forte prevalência
cabocla.
Além da sua
diferenciação racial, era uma figura distinta de todos, seja na maneira de
agir, de pensar, de ver as coisas, de se divertir e de amar. Por isso, era
admirado, especialmente pela energia que emanava e pela facilidade de se comunicar
e, até, conquistar as pessoas, notadamente as mulheres. Amou muitas delas;
deixou outras na saudade e gerou muitos filhos.
Não havia tempo ruim
para ele. Vivia intensamente o presente, sem se apegar ao passado e, tampouco,
se preocupar com o futuro. O hoje era o mais importante para ele.
Para se ter uma
ideia da sua irresponsabilidade ou vibração por festas e noitadas, conta-se
que, aos primeiros sintomas do nascimento de sua filha Margarida, mais que
depressa foi comprar querosene para iluminar as placas naquela noite fria de
junho, na expectativa da chegada de mais um rebento.
No caminho, atraído
por uma dança de coco que se desenrolava na Rua do Cassaco, esqueceu-se da sua
missão e só voltou para casa três dias após o parto da sua filha mais nova. O
pior, sem o “gás”.
Vivia de fazer
tamancos, principal calçado da maioria da população apreciado por pobres e
ricos, em razão da excelência do produto. Era um artesão de mão cheia! Passava
o dia a recortar os diversos moldes, talhando-os em uma madeira especial,
oriunda da mata atlântica, ao tempo em que contava lorotas e atendia, sempre
com muita alegria a sua clientela e visitantes que se esbaldavam com o seu
palavreado sutil, espirituoso e sem agressão a quem quer seja.
Uma, dentre muitas
características, era comer muito, ou melhor, exageradamente. Gostava das coisas
boas e adorava queijo, que comia um quilo de uma assentada só, conforme
presenciei. Empanturrava-se de feijão, farinha e charque, sem esquecer o
toucinho, terminando com meio quilo de goiabada.
Por tal vida
desregrada, nos vários aspectos, contraiu uma doença venérea, culminando por se
acometer de uma incontinência urinária, que o levou a viver um bom tempo, e até
os seus últimos dias, de saia - uma espécie de saiote, que ele mesmo confeccionava.
Pela sua maneira de ser e respeito que impunha, era visto com certa normalidade
e todo mundo absorvia aquele homão de olhos claros e pele rosada com traje
feminino.
O curioso era que,
mesmo assim, mantinha sua condição de macho conquistador e muitas mulheres
vieram morar com ele, o que era uma constância, pois nenhuma delas demorava
mais de uma semana. Dizia ele, que também era palrador, que elas não aguentavam
o seu fogo e, portanto, tiravam o time do campo em pouco tempo de jogo.
Era fantástico ouvir
as suas estórias. A sua casa, que também era o local de trabalho, vivia cheia
de espectadores. Lembro-me, aos 10 anos de idade, de uma plateia assídua, que
incluía meu pai, cujos papos, na maioria das vezes, eram impróprios para
crianças e, a contragosto, eu tinha que me retirar, justamente no melhor
momento da conversa - sobre as aventuras amorosas.
Entretanto, o mais
marcante na memória de todos, especialmente dos mais jovens, era seu espírito
festeiro, sobretudo no período de São João. Aí, ele era o máximo: enfeitava a
rua, fazia uma fogueira de mais de dois metros cúbicos, implantava um mastro e
passava toda noite bebericando e assando milho, que era distribuído para os
amigos e admiradores, pois jamais foi mesquinho e nunca teve inimigo.
A apoteose da festa
era os fogos e a famosa corrida de barquinhos, aviõezinhos e bonecos que,
impulsionados por foguetes, deslocavam-se sobre um arame, a uns 2 metros de
altura, numa distância de 100 metros, deixando a todos extasiados com aqueles
“efeitos especiais”, únicos em toda redondeza.
A Rua do Rosário
toda se enfeitava e o povo se aglomerava para assistir “aqueles efeitos
especiais” do Manuel João, que recebia o assessoramento do Luiz ferreiro, assim
chamado pela sua atividade, aliás, um exímio profissional. Seu vizinho e amigo
de muitos anos.
A cada São João,
inovações iam surgindo, dando lugar também aos bonecos articulados que, através
de engrenagens, movimentavam serras, casa de farinha, dançarinos, oriundas da
criatividade do melhor ferreiro da região, logicamente incentivado pelo
tamanqueiro.
Em 1950, deixei a
terra e não mais me avistei com o Manuel João, que faleceu poucos anos depois,
porém ficou guardada na minha “caixa preta” essa bonita recordação da minha
infância interiorana.
Assim foi o meu primeiro
herói: humilde, simples, de muita prosa, amigo, solidário; alegre, feliz,
irresponsável em alguns momentos de sua vida e muito festeiro.
Uma figura forte, de
alto astral e que só pensava no presente, com a concepção de viver intensamente
cada momento que dispunha. Tinha, pois, uma filosofia de vida muito avançada
para a época. Não precisava de muita coisa para ser feliz e ainda passava bons
fluidos para os outros, sem se aperceber e, tampouco, por querer
propositadamente, mas por emanar espontaneamente vibrações positivas.
Uma grande figura
que, como todos aqueles que por aqui passam, para cumprir uma nobre missão, não
morrem jamais! Pelo menos, para mim, ele continua presente, mesmo que não seja
nome de rua ou logradouro público Senti isso quando passei pela atual Rua
Lindolfo Simões, em uma visita à Terra Natal, no meu retorno às origens, e
visualizei o local onde era a sua casa, 60 anos depois.
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