Texto de *Olegário Venceslau da Silva
“Menina da saia
curta,/Saltadeira de riacho,/Te sobe no pé de coco/Pra botar coco pra baixo”. Os sons descompassados dos
aboios de velhos trovadores, ritmados em seus versos brejeiros remontam a um
pretérito que fogem às lembranças mais ofegantes e não menos vorazes em sua
real discrição. O terreiro de chão batido circundado de pálidos arbustos,
ressequido ao calor inclemente duma terra que vive seus costumes, arraigada a
religiosidade popular, diga-se uma consubstanciação do profano, com o pagode
dançado sob a batuta do pandeiro, e o sagrado presente nas cantorias de
benditos e encomendações de almas, nas intermináveis noites de vigílias.
Pelos íngremes caminhos de uma Viçosa campesina e feudal, cortado
pelo caudaloso e vetusto Paraíba com suas manias de curvas, esbarrando amiúde nas
ribanceiras avermelhadas, e nas alagadas pedras que ousam esbarrar sua marcha
cadenciada, levando suas barrentas águas ao encontro do mar, eis que surge na década
de 1923, feito sol ao romper o breu da madrugada um mestre na arte de versar,
ainda que sufragado pelo ostracismo a que fora destinado e o anonimato que sem
piedade impôs a ele uma vida de solidão e glórias efêmeras e não menos tênue.
Plácido Pereira da Silva, menino irrequieto e desprovido de toda e
qualquer forma de riqueza, criou-se à pouco pão e muito suor como herança de
seus genitores, que não tinham sequer condições de educá-lo à sombra das
letras, cumprindo destarte o destino que lhe fora outorgado. A inteligência
para lidar com a pena e tinta lhe foi negada por circunstâncias adversas, sendo
suprimida pela privilegiada memória e paixão pela cantoria e aboios de vaqueiros
e poetas, como numa verdadeira arcádia intelectual, compreendida apenas por
aqueles que conhecem as agruras e intempéries, tão peculiar ao homem do campo e
da roça, com as mãos calejadas pelo peso de suas enxadas, madurado ao sol do
meio dia, e resignados a uma crença inabalável cuja devoção perpassa suas
labutas e necessidades temporais. Neste cenário o velho Passinho - vulgo dado a
Plácido Pereira - ensaia seus primeiros versos, num trocadilho de palavras que
extasiava a turba que presenciava sua apresentação.
A caipirinha por anos à fio foi sua inseparável companheira, quando
nas taperas viçosenses, em noites sempre iluminadas pela tremula luz da lamparina
Passinho se exibia cantando coco, animando os brincantes que rumavam das
longínquas regiões para ouvi-lo sempre disputando com outro vate os mais
vibrantes e sonoros aplausos, como reconhecimento ao talento inconteste de um
poeta analfabeto e não menos genial cuja sabedoria a vida lhe presenteou: “O
homem que sofre de câimbra/não monta em burro manhoso/cantou do grilo
fanhoso/não dá prova em todo samba/e quem gosta de muamba/ não perde um serviço
cedo/moça que gosta de enredo/não casa, fica na sobra/quem já foi mordido de
cobra/quando ver cipó tem medo.[...] O homem quando é ladrão/que ver a polícia
se assombra/quem já foi queimado de bomba/não festeja o São João/quem apanhou
em questão/vendo briga corre cedo/quem nunca guardou segredo/de ruindade nunca
sobra/quem foi mordido de cobra/quando ver cipó tem medo.”
A boemia alegrava diuturnamente a vida paupérrima de Passinho, que
quase sempre imerso numa embriaguez descomunal sentado no meio fio das ruas de
Viçosa e Chã Preta, chamava atenção quando do batido frenético de seu pandeiro
puxava um verso improvisado sobre os assuntos mais variados, demonstrando que
seu reinado poético ainda perdurava, mesmo que nas portas dos botequins tivesse
apenas seus parceiros de mesa como espectadores. Seguia rigorosamente as regras
trovadorescas dos renomados poetas do século XIX, cujos versos metrificados se
confundiam com os de Olavo Bilac, Vicente de Carvalho, Alberto de Oliveira e
Raimundo Correia - quarteto parnasiano - mas sem abandonar seu linguajar
caipira e desprovido de polidez.
Autêntico mestre da embolada e exímio puxador de loas, Passinho
roubava a cena com seu rosto pintado de múltiplas cores, com o chapéu de mateu
do reisado sobre a cabeça, embalado pelo frenesi da turba que alvissareira gritava
seu nome, enaltecendo ainda mais o ego do velho matuto, quando das
apresentações culturais em Chã Preta, na sua festa de emancipação política no
mês de março.
Mas o destino não lhe reservou apenas dissabores e uma vida
laboriosa, não in totum - em sua totalidade - foi ainda complacente ao
coroá-lo com uma sapiência indescritível, tornando-o um dois mais importantes
cantadores de coco que Alagoas já teve, cuja vocação poética possibilitou sua
aproximação com outro importante vate - Paulo Duarte Cavalcante- advogado,
professor e político.
Os alpendres da casa grande do antigo engenho Caçamba - atualmente fazenda
- nos recônditos boqueirões da Chã Preta, berço dos Holanda e Cavalcante era o
ponto de parada quase sempre obrigatório, de Passinho e seu pandeiro, que
rumava de sua Viçosa para fazer repentes com o amigo Paulo. Por longas e
intermináveis horas ambos trocavam motes e num observar contemplativo, a
criadagem da casa e os homens do campo largavam seus instrumentos de labuta
para se inebriarem ao som da disputa de dois titãs do repente caeté - o doutor
e o matuto.
Mas o velho Passinho foi embora para outras plagas, cantar seus
versos e embolas para muito além. A voz rouca e descompassada do poeta
viçosense feneceu, calando-se para sempre feito acauã no seu último canto, num
voo sem volta. A Chã Preta ficou privada de seu grande mestre improvisador, o reisado
perdeu a alegria e o que dantes eram fitas multicoloridas, sobraram apenas
resquícios de trajes incolores e cinzentos, do mateu mais boêmio e festeiro que
já existiu.
* Escritor, advogado, membro da Academia Maceioense de Letras,
membro da Academia Alagoana de Cultura, membro da Comissão Alagoana de Folclore
e sócio do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.
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